terça-feira, 21 de outubro de 2008

A Herança

A vida é uma seqüência de escolhas, que fazemos a cada segundo. Podemos escolher entre acordar ou continuar dormindo. Parar ou andar. Transformar pensamentos em ações, ou deixá-los apenas na mente. Podemos escolher entre ser um espectador da própria vida, ou um ator, agente transformador da sua própria realidade.
É preciso voltar a atenção para as escolhas do dia a dia, para a intervenção consciente e ativa do indivíduo em relação o meio em que vive, sua família, sua comunidade.
Diante de uma escolha que tenha gerado resultados negativos, podemos optar por mudar ou esperar que a atitude correta venha do outro. É como observar, de braços cruzados, o planeta ruir a cada dia, a mancha cinza no céu outrora azul, as torres e prédios desafiando o curso dos ventos. Muitas vezes escolhemos não fazer nada, simplesmente porque é mais fácil e cômodo pensar que a solução não esteja em nossas mãos.
Rotulamos a preservação ambiental como uma questão global, que exige soluções múltiplas, grandiosas, que certamente não estão ao nosso alcance. Mas toda grande ação tem um ponto de partida, nasce da vontade de quem percebeu que algo precisava ser mudado, e ousou dar o primeiro passo.
A preocupação com o planeta deve ser a mesma de quem prepara a cama para o sono de seu filho. Com as nossas escolhas, estamos preparando o mundo onde viverão nossos filhos. E se eles perguntarem o que fizemos para contribuir com a preservação da mãe-terra? Não sabíamos da quantidade de poluentes que lançávamos no ar ao ligar ao carro até mesmo para ir à padaria? Não sabíamos da escassez da água, mesmo quando nos dávamos ao luxo de um banho de meia hora? Não sabíamos das conseqüências do excesso de lixo produzido, e descartado de forma a gerar ainda mais lixo?
A solução não está apenas nas pequenas atitudes, mas em uma consciência global que promova uma Justiça Ambiental. Não se trata apenas de adquirir novos hábitos que preservem o meio-ambiente, mas que nos libertem da dependência dos aparatos tecnológicos, como computador, celular, automóveis, processadores. Esses são criadouros de poluentes devolvidos ao meio ambiente. Não há dúvidas que apertar um botão e conseguir o que antes levaria tempo e esforço, facilita a vida de muita gente, proporcionando conforto e rapidez. Esses aparatos elétricos e eletrônicos, outros até virtuais, incorporaram-se de tal forma ao cotidiano do homem moderno que redefiniram alguns hábitos da sociedade.
O preparo de alimentos ganhou novo sentido com os industrializados e mesmo o cozimento no fogão parece ultrapassado diante das microondas que alteram a composição orgânica do alimento, mas vencem pela praticidade. É só apertar o botão. Amassar alho, picar cebola, para quê verter lágrimas? Uma colherinha de tempero pronto e está resolvida a questão. Mesmo que na colherinha venha também uma dose de conservante, que nem se sabe o que contém.
Na hora do almoço, a falta de tempo e de cuidados com uma alimentação saudável nos faz colocar sobre a mesa, uma grande sopa de massa e gordura, industrializados e processados. No lanche das crianças, uma generosa quantidade sal, gordura, açúcares, conservantes e colesterol, disfarçados em forma de inocentes floquinhos de milho, balinhas, chocolates, batatinhas fritas, lanchinhos e refrigerantes. Resta saber se é essa a herança ambiental e de saúde que queremos perpetuar para as gerações futuras.

domingo, 5 de outubro de 2008

Alguém para dividir os sonhos

Infância tem som e tem cheiro de fantasia. De risos. De sonhos. Mas também de angústias e medos. Um mundo desconhecido me foi apresentado e foi descortinando-se a cada segundo, estivesse eu pronta ou não. Mal me despedia do aconchego dos braços da minha mãe, do olhar doce e da segurança que eu sentia ao lado do meu pai, nem da companhia do meu irmão, o único com quem eu dividia as descobertas do dia a dia.
O mundo de carinho, conforto e proteção parecia existir em um universo parelelo, principalmente quando a cortina se abriu um pouco mais e do outro lado do palco, uma inscrição em azul: ESCOLA. Eu preferia ficar na platéia, mas não tinha escolha. Aliás, Escolha e Escola, só rimam mesmo na poesia! Na prática, elas parecem cada vez mais distantes uma da outra.
O sinal estridente indicava que era hora de entrar. Meu Deus, o que era aquilo? Que gente estranha era aquela, todas iguais, vestindo igual, gesticulando igual?
- Agora, crianças, quero que façam um desenho bem bonito!
E lá ia a tia com cara de boazinha e voz de taquara rachada desenhar na lousa algo que ela julgava apropriado para a fase da vida daquelas criançinhas iguais.
Eu nem olhava a lousa! Não era daquele jeito que eu queria desenhar. Pra quê fazer aquela meia dúzia de traços mal feitos que não me serviriam de nada? A casa que eu lembrava, aquela redoma de afeto que eu trazia em mim, não era nada parecido com aquilo! Então, não fazia.
Imagino a coitada da “tia” tentando encontrar uma maneira de me fazer pegar o maldito lápis e desenhar, exatamente como os outros. Copiar, claro. Criar era contra os seus princípios. Em meu protesto silencioso, eu deixava minha mente vagar. E como ela voava, livre, enquanto meu olhar perdido – porém brilhante – parecia estar em outro mundo, onde milhões de coisas aconteciam. Mas isso intrigava a professora. Ela devia achar que eu tinha alguma espécie de autismo ou fobia social. Que nada! Eu só não queria fazer parte daquela brincadeira sem graça de ser igual, e fazer igual a todo mundo.
O intervalo, recreio, em criancês, era a meia hora mais esperada da turma. Brincadeira de rodas, pega-pega, cantigas, devia ser legal participar de tudo aquilo. Mas eu não fazia o menor esforço para estar na roda, porque me sentia fora dela.
O tempo foi passando e eu descobri outra faceta do recreio: era a hora do lanche! Hora de sorver as guloseimas que o meu pai comprava a caminho da escola. Guloseimas, aliás, compartilhadas sem cerimônia pelos coleguinhas. Não porque eles tomavam, mas porque eu oferecia. Afinal eles pareciam gostar do que eu trazia na lancheira, por mais que eu não me esforçasse para entrar na brincadeira deles.
Mas quando as tias perceberam que o lanche acabava antes de chegar à minha boca, tomaram a sábia decisão de me isolar do grupo. Convenhamos, é uma atitude muito mais fácil do que resolver o problema. Lá estava eu, isolada na primeira tentativa de estabelecer contato. Ora sozinha, ora com alguma professora.
Até que era divertido, mais legal conversar com gente grande do que com as criançinhas que só pensavam nas dancinhas da Xuxa, e prendiam o cabelo para ficarem parecidas com a rainha! Enquanto eu comia, milhões de coisas aconteciam, no mundo secreto da minha imaginação. Eram histórias e personagens que só esperavam uma oportunidade para ganhar vida.
Essa oportunidade não demorou a surgir, por trás da cortina. Era grande, mágico... então era possível juntar todas aquelas letrinhas chatas de se desenhar e formar palavras? Sons? Sentimentos? Foi simplesmente fascinante encontrar uma forma de fazer aquelas histórias e personagens jorrarem para o papel. O caderno passou a ser meu melhor amigo, companheiro de todas as horas. Nas linhas tortas, encontrei finalmente, alguém com quem conversar. Mais do que isso: alguém para dividir os sonhos!