domingo, 5 de outubro de 2008

Alguém para dividir os sonhos

Infância tem som e tem cheiro de fantasia. De risos. De sonhos. Mas também de angústias e medos. Um mundo desconhecido me foi apresentado e foi descortinando-se a cada segundo, estivesse eu pronta ou não. Mal me despedia do aconchego dos braços da minha mãe, do olhar doce e da segurança que eu sentia ao lado do meu pai, nem da companhia do meu irmão, o único com quem eu dividia as descobertas do dia a dia.
O mundo de carinho, conforto e proteção parecia existir em um universo parelelo, principalmente quando a cortina se abriu um pouco mais e do outro lado do palco, uma inscrição em azul: ESCOLA. Eu preferia ficar na platéia, mas não tinha escolha. Aliás, Escolha e Escola, só rimam mesmo na poesia! Na prática, elas parecem cada vez mais distantes uma da outra.
O sinal estridente indicava que era hora de entrar. Meu Deus, o que era aquilo? Que gente estranha era aquela, todas iguais, vestindo igual, gesticulando igual?
- Agora, crianças, quero que façam um desenho bem bonito!
E lá ia a tia com cara de boazinha e voz de taquara rachada desenhar na lousa algo que ela julgava apropriado para a fase da vida daquelas criançinhas iguais.
Eu nem olhava a lousa! Não era daquele jeito que eu queria desenhar. Pra quê fazer aquela meia dúzia de traços mal feitos que não me serviriam de nada? A casa que eu lembrava, aquela redoma de afeto que eu trazia em mim, não era nada parecido com aquilo! Então, não fazia.
Imagino a coitada da “tia” tentando encontrar uma maneira de me fazer pegar o maldito lápis e desenhar, exatamente como os outros. Copiar, claro. Criar era contra os seus princípios. Em meu protesto silencioso, eu deixava minha mente vagar. E como ela voava, livre, enquanto meu olhar perdido – porém brilhante – parecia estar em outro mundo, onde milhões de coisas aconteciam. Mas isso intrigava a professora. Ela devia achar que eu tinha alguma espécie de autismo ou fobia social. Que nada! Eu só não queria fazer parte daquela brincadeira sem graça de ser igual, e fazer igual a todo mundo.
O intervalo, recreio, em criancês, era a meia hora mais esperada da turma. Brincadeira de rodas, pega-pega, cantigas, devia ser legal participar de tudo aquilo. Mas eu não fazia o menor esforço para estar na roda, porque me sentia fora dela.
O tempo foi passando e eu descobri outra faceta do recreio: era a hora do lanche! Hora de sorver as guloseimas que o meu pai comprava a caminho da escola. Guloseimas, aliás, compartilhadas sem cerimônia pelos coleguinhas. Não porque eles tomavam, mas porque eu oferecia. Afinal eles pareciam gostar do que eu trazia na lancheira, por mais que eu não me esforçasse para entrar na brincadeira deles.
Mas quando as tias perceberam que o lanche acabava antes de chegar à minha boca, tomaram a sábia decisão de me isolar do grupo. Convenhamos, é uma atitude muito mais fácil do que resolver o problema. Lá estava eu, isolada na primeira tentativa de estabelecer contato. Ora sozinha, ora com alguma professora.
Até que era divertido, mais legal conversar com gente grande do que com as criançinhas que só pensavam nas dancinhas da Xuxa, e prendiam o cabelo para ficarem parecidas com a rainha! Enquanto eu comia, milhões de coisas aconteciam, no mundo secreto da minha imaginação. Eram histórias e personagens que só esperavam uma oportunidade para ganhar vida.
Essa oportunidade não demorou a surgir, por trás da cortina. Era grande, mágico... então era possível juntar todas aquelas letrinhas chatas de se desenhar e formar palavras? Sons? Sentimentos? Foi simplesmente fascinante encontrar uma forma de fazer aquelas histórias e personagens jorrarem para o papel. O caderno passou a ser meu melhor amigo, companheiro de todas as horas. Nas linhas tortas, encontrei finalmente, alguém com quem conversar. Mais do que isso: alguém para dividir os sonhos!

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