quarta-feira, 11 de março de 2009

A TV no banco dos réus

Antes de discutir a “verdade da televisão” e colocá-la no banco dos réus para o julgamento de valores, entre o bem e o mal, proponho um convite à reflexão. Uma leitura – ou releitura – do mundo. Não é preciso para isso retomar o surgimento da humanidade, nem percorrer os corredores obscuros da história e da filosofia. Basta lembrar de uma célebre frase de Arthur Schopenhauer, traduzida para o português como: o mundo é minha representação, ou ainda “o mundo é sua representação”. Sua ou minha, a representação é um fato, e o fato é sua representação.
Sem grandes profusões filosóficas, o importante é se observar que a idéia defendida por Schopenhauer em 1819, e interpretada por muitos, está intrinsecamente ligada às discussões atuais sobre a imagem na TV. A exploração do tempo, do espaço e a manipulação da a realidade. O que tomamos por realidade, é um recorte que a representa, um fragmento deslocado de seu contexto e manipulado através da linguagem da televisão, para produzir sentido, mesmo que este esteja pautado em uma cópia imperfeita do real.
Uma cópia imperfeita e estrategicamente selecionada, editada. Não apenas pelas câmeras de TV, diretores, editores, produtores ou qualquer um envolvido nos bastidores da notícia. Há uma seleção ainda mais sutil, que é a do olhar. O olhar que escolhe o que quer mostrar, e o que escolhe o que quer ver. Sobre esta questão, em entrevista para o Observatório da Imprensa, o professor Arlindo Machado, questiona: O espectador de cinema escolhe o filme que vai ver antes de sair de casa, o leitor de romances escolhe o livro que vai ler, por que então o espectador de televisão não deveria selecionar o que vai entrar no seu aparelho? Ouso ainda complementá-lo: não só selecionar o que vai entrar na sua TV, mas no complexo aparelho mental.
Entre o que é apresentado pela TV e a leitura consciente do mundo, há um abismo cultural que envolve uma rede complexa de interesses e ideologias. Para que essa lacuna seja preenchida com um diálogo criativo, envolvendo o mundo dentro e fora da tela, é preciso antes de tudo entender que a televisão é um espaço plural de representações. Assim, a realidade que cabe no tempo e no espaço da TV, é resultado da manipulação da forma e do conteúdo.
A forma é definida pela linguagem da TV. Um complexo jogo de luz, explorando o espaço, os movimentos de câmera fazendo a vez dos olhar do telespectador que não tem a oportunidade de estar “ali”, mas pode acompanhar “agora” o desenrolar dos acontecimentos. Os efeitos sonoros, a voz dando vida à narrativa que vai tocar as sensações humanas. Vale observar que são estes mesmos elementos que fazem a linguagem do cinema - luz, câmera, ação.
Vamos ao conteúdo. A informação, por si só, não tem tanto poder de persuasão quanto a forma. Assim é possível dizer que a forma (a linguagem) potencializa a manipulação da realidade. Mas tudo isso acontece muito rápido, de forma que não sobra tempo para a reflexão, pelo menos não no breve momento em que as imagens televisivas chegam ao alcance dos olhos do telespectador – aquele que assiste de longe a um espetáculo (tele- longe, espectador – aquele que assiste a um espetáculo). Do outro lado da tela, o sujeito pode até assistir de longe, mas tem a impressão de estar próximo.
Não há melhor exemplo para ilustrar essa impressão do que um jogo de futebol. Da arquibancada ninguém jamais poderia ver – e ainda mais, rever – o momento do gol, de um ângulo em que é possível assistir todo o percurso da bola saindo dos pés do jogador até entrar na área, balançar a rede e o coração das pessoas. Tampouco poderia acompanhar a emoção expressa numa lágrima que escorre no rosto de um torcedor ou explode no grito ecoante da platéia.
O telespectador é bombardeado a todo momento, pela chuva de elétrons, imagens e sons já incorporados ao seu cotidiano. O artefato funciona então como uma extensão do homem. Assim como a câmera é a extensão do olho humano. Registra, comprova, testemunha e eterniza momentos.
Momentos como os descritos anteriormente só são possíveis graças à televisão. O professor Arlindo Machado, deixa claro uma coisa: convivendo com esta TV brasileira, que como tantas outras, insiste em copiar os modelos banalizados das TVS estrangeiras, existe gente querendo fazer uma TV que utilize seus recursos para potencializar a reflexão sobre o mundo e suas representações.
Agora, ao banco dos réus. Lá não está apenas um aparelho, mas um complexo ideológico, um olhar mecânico, um espelho distorcido da realidade, editor da verdade. O julgamento já começou, mas ainda cabe uma ressalva. A pergunta central do julgamento não deveria ser se a TV é “boa ou má”, mas o quê se está fazendo dela. A própria energia nuclear é inofensiva. Pode tanto salvar vidas como destruir. O problema está em quem faz uso dela, e principalmente “como” o faz. Da mesma forma, é o conteúdo televisivo. Isso sim deveria estar sendo julgado, tanto por quem faz quanto por quem assiste, principalmente por quem a critica.
Lidar com a manipulação da realidade é ter em mãos uma poderosa ferramenta que tanto pode informar, edificar vidas e consciências, quanto pode aniquilar o que o ser humano tem de mais precioso: sua inteligência. Pode tanto engrandecer, quanto “coisificar” o homem, tornando-o uma máquina de trabalhar, gerar lucro, fazer filho e consumir. Enfim, pode valorizar ou aniquilar a capacidade humana de leitura crítica do mundo. Sua alma. Nenhuma coisa existe sem o homem para criá-la. E o homem não existe sem sua alma para torná-lo humano. A alma sem o homem ainda é alma, é energia. Mas o homem sem sua alma é apenas uma coisa.

Viviane Pascoal Dantas, jornalista