domingo, 3 de agosto de 2008

Apenas um olhar

Oi, gente, ai vai a primeira história de uma jornalista com coração de poeta! Comentem!

Apenas um olhar


Era uma típica noite de terça-feira paulistana. O frio abraçando os gatos da noite que exploravam aquele bairro da Santa Cecília. Nome interessante para um lugar onde o sagrado e o profano parecem conviver bem: as beatas da igreja, as prostitutas nas esquinas, os estudantes de jaleco branco saindo do Mackenzie ou da Santa Casa, outros mais descolados a caminho do metrô. Nessa pluralidade de gente e de cor, um grupo de jornalistas apaixonados por literatura foi desafiado a praticar o exercício do olhar. Isso significava varrer a redondeza com olhos atentos para mais tarde, de volta à sala de aula, descrever o que encontrássemos de mais interessante.
Foi assim, que na companhia de dois colegas, percorri com os pés e com os olhos, a calçada da Rua General Jardim. Queria chegar a alguma esquina onde pudesse encontrar um típico quarentão solitário. Desses que param diante do balcão sujo de um bar, com os cabelos em desalinho, e pedem uma cerveja. Esperava encontrar um sujeito descontente com a vida, que fizesse da loira gelada, sua companheira, testemunha de um monólogo interior nem sempre inteligível.
Pus os pés na rua com o olhar domesticado, em busca de uma figura humana pré-determinada, talvez até pré-julgada. Realmente não foi difícil encontrar tal figura. Estava ali, sentado no bar, exatamente como eu imaginava. Mas meu olhar parou antes mesmo de chegar à esquina. Estava diante da Escola de Sociologia e Política, número 522 da General jardim.
Não foi a edificação arquitetonicamente interessante que me chamou a atenção, mas o homem parado ali, na frente dela. Era forte, negro, do tipo que convive bem com uns quilinhos a mais. Tinha o rosto arredondado, os olhos amarelados, porem vivos. A barriga saltando para fora da calça, a camisa um pouco aberta, a carteira de cigarros caindo do bolso. Uma latinha de cerveja aos seus pés. Sentado em um caixote de madeira, olhava as pessoas na rua. Ou o mundo?
Atrás de si, a grade de ferro que se estendia ao redor da faculdade. Era como se o portão separasse dois mundos: o daqueles que pensam a vida e o dos que a vivem. Por um momento, varri com os olhos o lado de dentro do portão. Havia grupinhos de jovens falantes, filosofantes, talvez. Discutiam sociologia, mas será que já ousaram, alguma vez, romper a barreira silenciosa dos portões da faculdade e alcançar o mundo do lado de fora? Teriam se interessado em saber o que pensa e sente um homem que na sociedade, agoniza no silêncio e na invisibilidade?
Alheio às profusões filosóficas dos jovens atrás de si, o homem no caixote de madeira sabia ser invisível, e parecia se divertir com isso. Olhou para dentro da escola e sorriu como se dissesse “O que vocês acham que sabem da vida?” E no momento em que se voltou novamente para a rua, seus olhos se cruzaram com os de uma jornalista que por ali passava, procurando uma cena interessante para transformar em palavras. É claro que ele não sabia disso. Não sabia quem eu era. E nem importava saber.
Quando meu olhar, não mais domesticado, ousou enxergá-lo, seus lábios se abriram em um sorriso, que no silêncio, disse: “bem vinda ao meu mundo”. E retribuindo o gesto, agradeci mentalmente por ele ter me permitido romper as barreiras da invisibilidade. E nem precisamos trocar palavras para que eu cruzasse os portões da cegueira social e entrasse em seu mundo. Bastou apenas um olhar. Não fosse por isso, eu certamente estaria descrevendo o quarentão solitário em companhia de uma loira gelada, no balcão sujo de um bar.

2 comentários:

Anônimo disse...

Viiii!!!
Realmente, nem sempre as coisas são o que parecem ser. Quando nos prendemos aos preconceitos nos privamos de conhecer profundamente o ser humano. Para pessoas sensíveis, basta "apenas um olhar" para romper essa barreira. Tenho muito orgulho de você. Te amo. Gysa

Thais Julianne disse...

Olá..sou jornalista também, em Cuiabá-MT. Digitei no google "homem no caixote" e encontrei seu texto. Belo. Quantas não são as barreiras sociais que criamos sem existir ou então, ignoramos fechados em nosso mundo pessoal? Volte a postar. Gostaria de ler seus textos. Até mais...Thais